“Não havia sequer uma placa com nome”, recorda o atual embaixador chileno no Brasil, Sebastian Depolo Cabrera. “Meus pais nos diziam que um ex-presidente escolhido pelo povo estava enterrado sob aquela tumba anônima e que aquele tratamento não era digno dele."
Defensor da tese de que o Chile poderia chegar ao socialismo por vias institucionais democráticas, Allende morreu no interior do palácio presidencial de La Moneda, resistindo ao ataque dos golpistas que usaram inclusive aviões da Força Aérea e tanques do Exército para bombardear o prédio.
Consumado com o apoio de parte da sociedade chilena e de governos estrangeiros, incluindo os dos Estados Unidos e do Brasil (também, então, sob o regime militar), o golpe levou ao poder o então chefe das Forças Armadas, o general Augusto Pinochet, que por 17 anos comandou forte aparato repressivo, resultando em uma das mais violentas ditaduras latino-americanas.
Organizações sociais e o próprio Estado chileno calculam que cerca de 40 mil pessoas sofreram abusos cometidos pelo regime. As forças de segurança pública também sequestraram e/ou mataram mais de 3 mil pessoas, das quais ao menos 1.162 mil seguem desaparecidas.
Só em 1990, ano em que a ditadura chilena chegou ao fim, os restos mortais de Allende foram levados para Santiago. Em 4 de setembro, com a Catedral cercada por uma multidão disposta a se despedir e homenagear Allende, uma cerimônia oficial marcou a transferência da ossada do ex-presidente para o cemitério geral da capital. Depolo estava prestes a completar 14 anos.
“Para mim, isso representa o quanto nos custou reposicionar a figura de Allende como grande líder político democrático, alguém que sempre apostou na viabilidade de promover transformações [sociais] por meios democráticos. Fatos negados por muitos anos”, avalia o embaixador, entrevistado pela Agência Brasil dias antes de o golpe civil-militar chileno completar 50 anos.
A data é objeto de extensa programação promovida pelo governo chileno, instituições públicas e privadas e por organizações sociais. Além de exposições - incluindo a do fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira, no Museu da Memória e dos Direitos Humanos de Santiago -, marchas, debates, apresentações artísticas e exibição de filmes, há uma série de iniciativas políticas agendadas, a começar pela transformação do Plano Nacional de Busca da Verdade e Justiça em uma política pública permanente.
Na prática, o Estado chileno promete assumir os esforços de busca pelos 1.162 desaparecidos, conforme o presidente Gabriel Boric anunciou em 30 de agosto. Por décadas, as próprias famílias das vítimas da repressão foram os principais responsáveis por tentar localizar os desaparecidos, conseguindo encontrar os restos mortais de 307 pessoas. O plano também estabelece a implementação de medidas de reparação e que garantam o acesso de familiares das vítimas às informações obtidas durante o processo de buscas.
“Não somos movidos pelo rancor, mas sim pela convicção de que a única possibilidade de construirmos um futuro mais livre e respeitoso com a vida e a dignidade humana é conhecer toda a verdade”, justificou o presidente chileno ao lançar o plano nacional.
Por iniciativa do governo de Boric, um ex-líder estudantil de esquerda, quatro ex-presidentes chilenos – Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994/2000), Ricardo Lagos (2000/2006), Michelle Bachelet (2006/2010 e 2014/2018) e Sebastián Piñera (2010/2014 e 2018/2022) – já assinaram documento que ganhou o nome informal de Compromisso de Santiago.
Os signatários da declaração se comprometem a cuidar e defender a democracia, respeitando a Constituição, as leis e o Estado de Direito diante de ameaças autoritárias e da intolerância. Também assumem o compromisso de enfrentar os desafios da democracia com mais democracia; defender e promover os direitos humanos acima de quaisquer diferenças ideológicas e fortalecer os espaços de colaboração entre Estados e o multilateralismo. O texto já divulgado termina destacando a importância do cuidado com a memória histórica, “âncora do futuro democrático que nossos povos demandam”. Convidados a aderir à iniciativa, conferindo-lhe um caráter suprapartidário, partidos de direita optaram por lançar seu próprio manifesto.
Sobre a programação dedicada aos 50 anos do golpe de Estado, o governo chileno afirma que a proposta é gerar um “espaço de encontro e reflexão em torno da memória, da democracia e do futuro”. Foram convidadas lideranças políticas de vários países, incluindo o Brasil, que será representado pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida; pelo secretário executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, e pelo assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade, Nilmário Miranda, já que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está na Índia, participando da Cúpula do G20.
Chefes de Estado que já confirmaram presença, como os presidentes do México, da Colômbia, Argentina e do Uruguai, também serão convidados a firmar a Declaração de Santiago durante cerimônia oficial no Palácio de La Moneda, nesta segunda-feira (11). O palácio será aberto à visitação pública, sendo necessário inscrever-se previamente. Locais de todo o país que foram usados como centros de detenção e tortura sediarão diversas atividades ao longo dos próximos dias.
Para o embaixador Depolo, “datas emblemáticas”, mesmo quando associadas a “trágicas experiências” são oportunidades para as sociedades aprenderem algo mais, “a fim de que fatos semelhantes não voltem a ocorrer". E há, segundo ele, ao menos três importantes razões para que também os cidadãos brasileiros se inteirem sobre os fatos ocorridos no Chile há 50 anos
“Primeiro, reconhecer o valor da democracia, que nunca está garantida. E se não a defendemos, outros valores como saúde, trabalho e segurança, também não estarão [assegurados]. Depois, nenhum país vive isolado. Isso ficou evidente na América Latina. Há suficientes evidências histórias sobre como, no contexto da chamada Guerra Fria, as potências estrangeiras participaram da articulação do golpe no Chile. É preciso compreender e lembrar isso. O terceiro motivo é que ninguém, nenhum país, vai produzir bem-estar para as pessoas sem grandes acordos democráticos que impulsionem e sustentem esses avanços”, disse Depolo, destacando as voltas da história.
“Pessoalmente, isso parece fechar um ciclo. Aos oito anos de idade, tomei conhecimento de que havia um presidente enterrado em uma sepultura não identificada. Quarenta e dois anos depois, há um lugar aonde posso levar minhas filhas e lhes contar sobre o que se passou e quem era Allende. Vou poder lhes dizer o que meu pai não pôde me dizer”, concluiu o embaixador.