Perigo é silencioso, pois há dificuldade em perceber hábitos como prejudiciais A pandemia do novo coronavírus acende um alerta para um perigo silencioso: o aumento do consumo de álcool. Uma pesquisa da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), de 2020, mostra que o abuso de bebidas alcoólicas foi alto na pandemia para 42% dos brasileiros. Segundo o levantamento, 52,8% usam a substância como método para relaxar de algum sintoma emocional, como ansiedade, nervosismo, insônia, preocupação e irritabilidade. É o caso de Jorge Queiroz, vendedor paulistano de 29 anos, que sentiu os impactos emocionais da pandemia. “Durante a quarentena, eu aumentei o consumo de álcool, devido à solidão, rotina totalmente alterada, tédio, ansiedade, angústia. Acabou sendo uma fuga para os sentimentos ruins da pandemia”, conta. Segundo a psiquiatra Fernanda Benquerer, Referência Técnica Distrital de psiquiatria da Diretoria de Saúde Mental (Dissam) do Distrito Federal, a situação de Jorge se repete entre milhões de brasileiros, que precisam lidar com fatores de risco para a saúde mental, tais como a necessidade do isolamento, que reduz as redes de suporte social; sentimentos de medo e ansiedade por se contaminar ou contaminar outras pessoas; medo de perder entes queridos; o próprio luto, com restrições aos processos de despedidas; interrupção de tratamentos de transtornos mentais que já estavam em curso antes da pandemia; e o impacto econômico que gera desemprego e dificuldades para suprir necessidades básicas, como moradia e alimentação.
“Isso tudo pode ter aumentado, tanto o consumo de substâncias, quanto o risco do aparecimento de outros transtornos mentais”, comenta. A psiquiatra também chama a atenção para o risco de desenvolver dependência ou vício do álcool. “Esse aumento de consumo pode mesmo levar à dependência do álcool. A gente sabe que a dependência se desenvolve a partir do consumo frequente. É uma síndrome que a pessoa apresenta uma necessidade de aumento das quantidades ingeridas, ela bebe cada vez mais, para ter o mesmo efeito que tinha antes”, avalia. O médico do Hospital das Forças Armadas de Brasília, doutor Hemerson Luz, explica que o desequilíbrio emocional e os fatores ambientais, nos quais o indivíduo está inserido durante a pandemia, podem levá-lo à dependência crônica e progressiva do álcool, a despeito de todos os efeitos prejudiciais à saúde provocados pelo excesso da substância no organismo. Beber Pesado Esporádico A pesquisa da OPAS também ressalta os problemas do “beber pesado esporádico” (BPE), caracterizado como consumir mais de 60 gramas de álcool puro, ou cerca de cinco doses, em pelo menos uma ocasião, durante os últimos 30 dias. O indicador busca detectar pessoas que consomem álcool em quantidade grande o suficiente para resultar em intoxicação e/ou dano, mas pode variar de acordo com o grupo sociodemográfico. O consultor de tabaco, álcool e outras drogas da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), Diogo Alves, também comenta alguns problemas de saúde provocados pelo uso da substância. “O álcool está associado a mais de 200 problemas de saúde, incluindo doenças hepáticas, lesões gerais, segurança viária, violência, câncer, doenças cardiovasculares, auto violência ou suicídio, tuberculose e várias outras doenças sexualmente transmissíveis”. Alves também aponta os impactos socioeconômicos do consumo de bebidas alcoólicas. “Aqui na região das América [o álcool] é atribuído a pelo menos 5,5% do total de óbitos. Então todos esses óbitos acabam tendo um impacto no desenvolvimento dos países. Você tem perda de produtividade, aposentadoria precoce. Impactos econômicos e sociais”, comenta. Tratamento Vanessa Soublin, diretora de Serviços de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do DF, diz que a relação com o álcool precisa ser constantemente avaliada em nossas vidas, e pontua que reconhecer o consumo exagerado como uma patologia depende de uma avaliação profissional. “Não há uma 'quantidade segura' do consumo de álcool. O que a gente precisa usar como sinal de alerta são as repercussões negativas na nossa vida que o consumo pode estar fazendo. Se eu me envolvo em um acidente, se deixo de ir ao trabalho ou se meu consumo gerou conflito familiar, por exemplo. Qualquer uma dessas repercussões já pode ser um indicativo de que nosso uso deixou de ser recreativo”, ressalta. A especialista orienta que a população com esse tipo de dependência conta com o apoio da atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS). “As pessoas podem procurar as unidades básicas de saúde (UBS) para avaliação do consumo e posteriores orientações. Se a gente já tem uma dependência química de maneira mais forte ou se tem essa suspeita, temos os Caps AD, que são Centros de Atenção Psicossocial. Eles são de porta aberta, ou seja, não é necessário agendar atendimento”. Nos Caps, são realizados diversos tipos de atendimentos multidisciplinares, para que o paciente consiga ser avaliado e atendido dentro de um plano terapêutico adequado. Como pessoas que têm problemas mais graves enfrentam dificuldade de perceber o quadro, há ainda grupos orientativos para os familiares dos dependentes dentro dos Centros de Atenção.