Esta é a descrição da visita a um museu. Não é um daqueles tradicionais, com pinturas de artistas renascentistas ou artefatos arqueológicos, mas, ainda assim, um museu. No acervo, casas, muros, ruas, cerca de 20 mil moradores e o modo de vida deles. O Museu de Favela é uma das organizações que compõem a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro, grupo que completa 10 anos em 2023. A rede defende um conceito mais abrangente de museu, incluindo espaços de memória, experiências coletivas e ações voltadas para educação, entretenimento e conhecimento.
“Os museus tradicionais partiam de uma perspectiva distante em relação ao outro. Quando falavam de povos indígenas, quilombos e favelas, sempre falavam em terceira pessoa. A museologia social traz uma experiência na primeira pessoa do singular e do plural. São museus comunitários que falam sobre si mesmos e rompem com qualquer intermediação. Não precisam de alguém que fale por eles”, explica o museólogo, poeta e diretor do Museu da República Mario Chagas, que é membro da rede.
O Museu de Favela foi criado em 2008 como uma organização não governamental (ONG) liderada por moradores do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho. Como ruas e becos recebiam visitas frequentes de turistas, eles resolveram contar a história das comunidades por meio de grafites nos muros das casas. Com curadoria do artista Acme, pintaram os muros e inauguraram em 2010 o Circuito das Casas-Tela: uma visita guiada, com duração de até três horas, que inclui a observação e de 27 moradias.
Os organizadores entenderam que o projeto era coerente com o conceito de museologia social. Nas telas do museu, há referências aos primeiros moradores e às transformações culturais ao longo do tempo. Heranças indígenas, afro-brasileiras e nordestinas são destacadas. Na construção dessas memórias, os líderes do Museu de Favela precisaram incluir toda a comunidade. Os donos das casas participavam da decisão sobre o que ia ser grafitado nos muros.
“Passamos um ano fazendo a mediação com os moradores, para saber se concordavam ou não. Foi, de fato, um trabalho coletivo. Tinha morador que não achava legal o jeito como a história estava sendo pensada para a parede dele. E aí, aconteciam as conversas para chegar a um consenso. Tem 13 anos que as pinturas estão lá. Os moradores não pintam nada por cima. E são eles que, muitas vezes, avisam quando precisa restaurar algum grafite”, diz Márcia Souza, uma das fundadoras do Museu de Favela.
Na Vila Autódromo, à margem da Lagoa de Jacarepaguá, o museu tem uma configuração distinta. Boa parte do acervo não é constituída de casas e sim de escombros e memórias dos que viveram ali. Nos anos que antecederam os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, centenas de famílias foram removidas para a construção do Parque Olímpico, do Centro de Mídia e de vias expressas. Apenas 20 conseguiram permanecer.
O Museu das Remoções foi criado em 2016 para impedir que tais acontecimentos fossem esquecidos. O percurso expositivo pelas ruas da comunidade é uma das principais atividades, e inclui ouvir dos moradores remanescentes as histórias de violência e as de resistência. Eles lembram dos vizinhos que tiveram de deixar o local. Falam sobre as agressões físicas e psicológicas da Guarda Municipal e de medidas intimidatórias da prefeitura, como corte de iluminação pública e suspensão da coleta de lixo e da entrega de correspondência.
Existem no percurso suportes materiais dessa memória: esculturas feitas em 2016 a partir de escombros, com o apoio de estudantes de arquitetura e urbanismo. Algumas obras foram destruídas por tratores durante as remoções, mas outras foram salvas pelos moradores, que criaram novas atividades para o museu. Exposições temporárias de fotografias e festivais de arte são alguns exemplos. Para breve, está prevista a inauguração de um centro cultural, que vai ajudar a ampliar o número de atrações.
“Começamos a olhar para a museologia de uma forma diferente. Pensamos em algo a partir dos escombros e do caos e também refletimos sobre o impacto que a sociedade sofria em função da especulação imobiliária. E começamos a perceber que era possível organizar nossa própria memória e cuidar para que não fosse apagada, como aconteceu com tantas outras favelas removidas na cidade, cuja história se perdeu”, destaca Sandra Maria, uma das fundadoras do Museu das Remoções.
A Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro faz parte de um movimento de transformação do que se entende como museu. As primeiras instituições remetem aos séculos 17 e 18 na Europa, quando critérios hoje considerados elitistas e excludentes, definiam o que era um museu. O padrão foi replicado em diferentes partes do mundo de forma hegemônica até a primeira metade do século 20, e era marcado por uma herança colonialista e imperialista. A década de 1970 marca um momento de maior discussão e revisão desses conceitos.
A definição mais atual e abrangente é de agosto do ano passado e surgiu na 26ª Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus (Icom), em Praga, na República Tcheca. “Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus promovem a diversidade e a sustentabilidade”, diz o texto principal. Além disso, os museus atuam e se comunicam de forma ética, profissional e com a participação das comunidades, oferecendo experiências variadas de educação, entretenimento, reflexão e compartilhamento de conhecimento.
Segundo Mario Chagas, os museus sociais são coerentes com essa realidade, embora não estejam presos em definições rígidas, nem dependam de organismos internacionais ou de critérios acadêmicos para ser legitimados. Assim, um museu pode ser entendido como qualquer iniciativa comunitária que envolva espacialidade, temporalidade e engajamento na preservação de memória, explica o museólogo. Dentro dessa perspectiva, a Rede de Museologia Social promove intercâmbio com mais de 50 iniciativas no Rio de Janeiro, e a diversidade de ambientes e de conteúdos não impede que o grupo tenha compromissos em comum.
“Fazemos um trabalho de articulação e de união. É um trabalho político, que envolve cultura, arte, e é pensado de baixo para cima”, acrescenta Chagas. “Nossos compromissos são bem claros. Estamos comprometidos com o combate ao racismo e à LGBTfobia, com a defesa dos povos indígenas, das mulheres e dos direitos universais à terra. Também estamos interessados em pautas sobre trabalho, saúde, moradia, direitos humanos. Temos causas que nos aproximam e nos unem fortemente”.
O pensamento é compartilhado por aqueles que vivem e constroem diariamente os museus sociais. “Nosso maior objetivo é trazer visibilidade para as favelas e fazer essas histórias circularem. Que esses territórios sejam reconhecidos como patrimônios das cidades. É isso que nos move: manter essa memória para que não se apague. Muitas vezes, o tempo vai passando e as pessoas esquecem. E essas histórias não serão encontradas nas revistas, nos jornais, na internet”, ressalta Márcia Souza.
“Museus sociais evitam apagamento de grupos sociais e culturas. Estamos falando da preservação do nosso povo. Os museus são ferramentas potentes de luta, valorizam a identidade e fortalecem os direitos de um povo. Vivemos em uma sociedade injusta e desigual. Com a organização das memórias, as pessoas preservam também seus direitos. Museus tradicionais valorizam mais as histórias de reis, presidentes, senhores, nobres. Na museologia social, grupos que não se sentem representados podem organizar e preservar suas tradições, memórias e heróis”, enfatiza Sandra Maria, do Museu das Remoções.