“Se você disser que a sua mão não tem culpa do que o seu pé faz, você está considerando a possibilidade do seu pé se mover sem a ajuda da mão. Algum tipo de ajuda vai ter. Nem que seja a indiferença, a não resposta”, salienta.
Ao falar do processo que ele denuncia como “comer a Terra”, o ambientalista cita, em sua opinião, as três expressões mais visíveis de destruição: mineração, devastação das florestas e exploração do petróleo. Dessa última, Krenak acredita que não tem como escapar. Nem os mais remotos povos.
Para ele, ninguém fica de fora do extrativismo determinado pela escolha do petróleo como matriz energética. E que está presente em todos os lugares e em diversas versões.
“Sabia que a capa do seu celular é feita de petróleo? Que, provavelmente, a minha sandália é feita de petróleo? Que o seu tênis é de petróleo? Os seus óculos, o seu boné?”, provoca.
Krenak foi o autor homenageado da segunda edição do Festival Literário Internacional de Paracatu, que terminou no último domingo (1º). Traduzido para mais de 13 países e imortal pela Academia Brasileira de Letras, ele afirmou que é preciso “ter poesia em nossa experiência de luta”.
“Acho que cada um de nós deve despertar o seu poder interior e pensar como fazer: se vai ser produzindo mais conhecimento, se vai ser produzindo arte, se vai ser escrevendo, falando, desenhando, plantando bananeira. Tem gente que acha que a maneira de fazer isso é plantando floresta, agrofloresta; ou fazendo campanha, cuidando da água, protegendo a vida selvagem. Até ontem, as pessoas achavam que só os humanos pensavam. Hoje, a gente sabe que as árvores, os peixes, todo organismo vivo tem ciência”, garante.
Em seu mais recente lançamento, “Kuján e os meninos sabidos”, Ailton Krenak escreve para as crianças. Ele explica que kuján, na língua krenak, significa tamanduá. E que o livro conta uma história da criação da humanidade para que as crianças tenham outra opção de como nós aparecemos na Terra, além da versão de Adão e Eva.
Os meninos sabidos são dois heróis culturais, para quem o criador ensina os artefatos, a pintura corporal, as cantigas. Ao escrever para as crianças, Krenak coloca a esperança em outras formas de viver no planeta, nos pequenos.
“A gente está exatamente pensando que ainda pode ter esperança em outras maneiras de habitar o mundo. E quem pode fazer isso serão as crianças, porque os adultos já estão todos manjados. Os adultos estão tarados por grana, por poder, por disputas”, argumenta.
Leitor, Krenak define o poeta Carlos Drummond de Andrade como seu escudo invisível. Ele diz que o poeta mineiro passou a vida avisando “que a aldeia, a Itabira (MG) dele, tinha se transformado em um retrato na parede. Quer dizer, o chão que ele pisava ruiu”.
Citando o poema “O homem; as viagens”, escrito por Drummond em 1973, Krenak aponta que o que o está no poema – as viagens do homem para habitar outros planetas, a lua e o sol – pode acontecer antes de o homem estar disposto a con-viver, como no verso final.
“A coisa mais simples da existência seria a gente habitar a Terra só com o contentamento de conviver. Um amigo me disse, ‘ah! Krenak, mas se não houvesse essas coisas que a gente julga danosas, ruins, a gente ia chegar em lugares onde não ia ter nada. Você ia chegar não ia ter luz elétrica, não ia ter a internet, não ia ter o carro’. Eu falei ‘mas são essas coisas que estão comendo o nosso mundo’. Seria mais ou menos como você ir passear num jardim e reclamar que está faltando demônios lá”.
O ambientalista também cita a obra de Joca Reiners Terron, “A morte e o meteoro”, lançada em 2019. No livro, um mundo distópico em que uma tribo da Amazônia está prestes a desaparecer por causa da destruição da floresta.
Krenak acredita que é como se a gente “estivesse vivendo na era moderna uma literatura de profecia”. Para ele, alguns autores, ao escrever, estão tomados por um sentimento tão poderoso que não estão mais fazendo literatura, mas profetizando, antecipando.
“Nós estamos num tempo onde as pessoas que são criativas, os poetas sempre foram chamados de antena, têm essa capacidade de verbalizar uma tragédia que a gente quer evitar. O sentido verdadeiro de uma literatura que expressa o seu tempo é exatamente mostrar para todo mundo o que eles não querem ver”, argumenta.
O ativista ainda acredita que a literatura pode ser um lugar da proposição e da busca por outras maneiras de conviver com a Terra.
“É imaginar a possibilidade de a gente habitar outros mundos sem sair da Terra. É diferente do poema do Drummond, que o humano quer sair da Terra para ir para outro lugar. Quando ele fala con-viver, ele está dizendo que não vai ter que aprender a aguentar o balanço da canoa e segurar a onda, viver aqui. A gente vai ter que viver na Terra, não tem outro lugar para o humano viver. O equipamento fisiológico que o humano tem, a nossa anatomia, só dá para viver na Terra”, finaliza.
*Repórter viajou a convite da organização do festival
Com informação da Agência Brasil