Acusações desse tipo geraram inclusive um conflito diplomático. No dia 9 de outubro, ao anunciar o cerco à Faixa de Gaza, o ministro da Defesa israelense Yoav Galant afirmou: "Não haverá eletricidade, nem alimentos, nem combustível. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade". Nas redes sociais, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, criticou a fala e a equiparou aos discursos nazistas. Israel o acusou de antissemitismo e, desde então, as relações entre os dois países estão estremecidas.
"Observamos um aumento constante nesse debate. Antes do início do conflito em 7 de outubro, a média diária de menções sobre antissemitismo ficava entre 200 e 300. Após o ataque do Hamas, ela sobe. Não ficou abaixo de 8 mil nem um dia. As menções sobre antissemitismo entraram no debate público brasileiro e, mesmo com oscilações, se mantêm em um patamar constante", disse à Agência Brasil, o sociólogo e pesquisador da FGV, Victor Piaia.
Mas o que é antissemitismo? Criticar Israel é antissemitismo? A Agência Brasil levantou essas questões com quatro pesquisadores que estudam o conflito histórico que envolve Israel e Palestina. Há um consenso de que críticas Israel e sobretudo à política do governo israelense não podem ser consideradas manifestações de antissemitismo à priori.
"Críticas ao Estado de Israel e às ações de Israel no território da Palestina como as feitas pelo Gustavo Petro não são antissemitas. Há críticas que contém elementos de antissemitismo. Mas não é o caso da maioria das manifestações que temos observado nos últimos dias. Mesmo a comparação com as práticas nazistas, dizer que a Faixa de Gaza é um campo de concentração ou um gueto, que está se fazendo um massacre, são críticas cabíveis ao Estado de Israel", diz Bruno Huberman, pesquisador e professor do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Natalia Calfat, cientista política e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), avalia que os principais questionamentos feitos a Israel no presente debate surgem em decorrência do caráter expansionista do sionismo e da política empreendida sob o governo liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Ela observa que críticas aos assentamentos israelenses são ressoadas inclusive por judeus.
"O que existe hoje é uma tentativa de enquadramento de toda crítica ao sionismo enquanto antissemitismo. É uma manobra diversionista que desloca a discussão, deslegitima as críticas e viola os princípios do debate democrático. Isso não significa dizer que não haja antissemitismo nem que não haja críticas a Israel acompanhadas de antissemitismo. Elas certamente existem, mas nem sempre é o caso e é preciso que haja clareza na diferenciação entre antissionismo e antissemitismo".
A socióloga Sabrina Fernandes, pesquisadora da Universidade de Guadalajara (no México), observa que o antissemitismo aparece no discurso de pessoas que confundem Israel com o povo judeu no geral. Ela avalia que as críticas ao governo e ao Estado de Israel são produzidas a partir de variadas orientações ideológicas e avaliações críticas.
"Isso significa que enquanto uma maioria tem a capacidade de criticar políticas específicas do governo de Netanyahu, ou criticar a política de Estado colonial que vai muito além de um governo ou outro, sem fazer referências negativas ou discriminatórias ao povo judeu, toda vez que Israel recebe exposição negativa, aparecem sim incidentes de falas e ataques antissemitas", diz ela.
O historiador e antropólogo Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que o antissemitismo surgiu no final do século 19 e se baseia na ideia de que os judeus formam uma corporação, um grupo fechado poderoso, com capacidade para decidir o destino do mundo através de um projeto secreto. "É uma perspectiva conspiracionista que aparece na crise da modernidade. E esse discurso adota a premissa de que o judeu é uma pessoa que não é daqui, ele é de fora. Você vai ter desenvolvimentos dessa perspectiva. Uns vão falar em expulsão, outros em perseguição e em extermínio como no caso dos nazistas".
Gherman avalia que as críticas a Israel, por mais duras que sejam, não são necessariamente antissemitas. Ainda assim, ele é uma voz divergente entre os pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil, pois vê o antissemitismo bastante presente no debate atual.
"Críticas muito duras podem ser até ofensivas, não legítimas, perigosas. Mas pra gente chamar de antissemita, a gente precisa entender se elas acionam essa ideia conspiracionista de que há um projeto corporativo judaico de dominação do mundo. E isso tem aparecido nas redes sociais, vindo inclusive de analistas do conflito que dizem que há um plano de Israel para exterminar o povo palestino e controlar aquela região. Mesmo que eles não falem de judeus e sim de Israel, há uma mesma gramática do antissemitismo. Está presente uma perspectiva de conspiração e de domínio", avalia.
Ele concorda que as acusações de antissemitismo têm sido usadas de forma indiscriminada, o que acaba deixando o conceito em crise. Mas o pesquisador alerta que o crescimento do antissemitismo no mundo a partir de 2010 tem sido apontado em diferentes estudos. No Brasil, embora não existam tantos casos, também tem sido notado um aumento recente.
Segundo um levantamento do Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil, o avanço das ocorrências coincide com a maior atividade de grupos neonazistas, que se sentiram fortalecidos com discursos adotados durante o governo anterior, liderado por Jair Bolsonaro. Entre 2019 e 2022, foram 55 casos de antissemitismo e 114 de neonazismo. Ao longo desse período, o número de episódios de um ano sempre foi superior ao do ano anterior. A maior parte dos casos (52%) envolveu autores extremistas e bolsonaristas.
De acordo com Bruno Huberman, o antissemitismo nunca fundamentou uma política de Estado no Brasil e nunca foi uma prática largamente disseminada no país. "O racismo opera em todo o mundo, embora de forma particular em cada território. No Brasil, negros e indígenas são subjugados. Eu, por exemplo, sou judeu. Mas não sou subjugado ou perseguido no Brasil por ser judeu. Aqui, o antissemitismo nunca foi algo estrutural. Na Europa foi estrutural e a gente pode ver até que, em algum sentido, ainda é".
Huberman observa que o antissemitismo, como as demais formas racismo, serve para subjugar um grupo étnico-racial a partir de algumas identidades particulares. Mas chama a atenção que, originalmente, ele foi direcionado aos judeus em países europeus. "O racismo é uma tecnologia de dominação criada na Europa. A gente não vê, por exemplo, antissemitismo contra os judeus que viviam na África ou na Ásia. Então tem a ver com as formas de dominação e de exploração que os europeus implementaram no mundo e estão relacionadas com acumulação de riqueza e com as situações coloniais".
Na Europa, os judeus passaram a ser responsabilizados por todos os males da sociedade na primeira metade do século 20. "Na França, eles eram taxados de traidores da nação. Em alguns locais, como na Alemanha, o antissemitismo fundamenta uma política do Estado. E os judeus começaram a ser sistematicamente exterminados", explica Huberman.
O movimento sionista surgiu como forma de resolver a questão do antissemitismo através da formação de um Estado-Nação exclusivamente dos judeus. A proposta acaba ganhando força após o fim da Segunda Guerra Mundial.
"Havia divergência entre os judeus. Essa não foi a única proposta para lidar com o antissemitismo. Mas esse projeto sionista avançou através da colonização da Palestina por várias décadas até a criação do Estado de Israel em 1948. Então o Estado de Israel representa esse projeto nacionalista de parcela dos judeus. Quando se critica esse projeto, você não está sendo antissemita", diz Bruno Huberman.
Sabrina Fernandes observa que, historicamente, o sionismo teve várias vertentes, mas a que domina levou à formação de Israel como um estado étnico-nacional, voltado para um povo específico. "Habitantes não-judeus não gozam das mesmas liberdades e proteções", afirma. Ela avalia que os palestinos e outros povos que vivem em áreas ocupadas por Israel - como a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e as Colinas do Golã - sofrem práticas discriminatórias. "Ocorre também no próprio território oficial de Israel onde moram palestinos e outros não-judeus que são tratados como cidadãos de segunda categoria".
De acordo com a socióloga, a propaganda sionista busca apresentar Israel como a única possibilidade de vida segura para os judeus. "Existe uma vasta discussão política e teórica sobre a necessidade de delinear muito bem as diferenças entre antissemitismo e antissionismo e a realidade é que a maioria dos antissionistas, incluindo judeus antissionistas, fazem um esforço para explicar as diferenças. O problema é que o esforço sionista de alegar que são a mesma coisa também é contínuo", diz.
Gherman não vê as fronteiras entre o antissionismo e o antissemitismo tão definidas. Para ele, eventualmente elas se misturam. "A ideia de antissionismo pode ter a ver com a percepção de que a solução do Estado Nacional judaico na Palestina não foi satisfatória ou produziu, por exemplo, exclusão de parte da população local. Antissionismo também pode ser a ideia de que os judeus não são dignos de um Estado ali no Oriente Médio. Posso discordar disso tudo e discordo em parte, mas nada disso é antissemitismo", pontua.
"Porém, o antissionismo baseado na ideia de que Israel é uma corporação, que domina o mundo, que degenera a região, que degenera o mundo, que convence o mundo através da propaganda, que tem influência em Hollywood, isso tudo é antissemitismo. Dizer que os judeus inventaram, em conjunto com as potências mundiais, a ideia de nacionalidade judaica para dominar aquela região também mobiliza a gramática antissemita", acrescenta o historiador.
Para Bruno Huberman, essa visão conspiracionista não é predominante nas críticas que estão sendo feitas. "Obviamente vão ter algumas pessoas que vão confundir o judaísmo com o Estado de Israel e vão dizer, por exemplo, que os israelenses dominam o mundo pelos bastidores. E dessa forma mobiliza formas de racismo tradicionalmente usadas contra os judeus. Mas, muitas vezes, o que se busca com acusações de antissemitismo é misturar essas coisas como uma forma de silenciamento, de bloquear o debate público. E além disso, quando você fala que toda crítica é antissemitismo há o risco de banalizar o tema. Antissemitismo é uma coisa perigosa, assim como a violência praticada por Israel também é perigosa".
Se o judeu pode ser alvo de antissemitismo, há consenso entre os pesquisadores que palestinos, por sua vez, têm sido alvos de islamofobia. O debate em torno da questão, no entanto, não tem ganhado a pauta pública no Brasil. Enquanto houve 231 mil menções ao antissemitismo entre 7 e 24 de outubro, o levantamento realizado pela FGV contabilizou apenas 9,9 mil menções aos termos islamofobia e islamofóbico. Houve um pico de 1,6 mil menções no dia 16 de outubro, dia em que ocorreu o esfaqueamento de uma criança muçulmana em Chicago, nos Estados Unidos.
"As menções à islamofobia, além de serem bem menos numerosas na comparação com as menções ao antissemitismo, não acontecem de forma constante. Você vê alguns picos, mas não atingem a mesma capilaridade", observa Victor Piaia.
Ele aponta algumas dificuldades para o avanço desse debate no ambiente virtual. "A dinâmica das redes sociais não favorece argumentos matizados. Os argumentos com menos nuances geram maior engajamento e mobilização. Aqueles com mais nuance tendem a perder espaço para um argumento mais acusatório, mais simplificado, mais direto. O argumento da islamofobia requer camadas. E é interessante notar também que críticas a Israel estão sendo realizadas a partir de outros termos: genocídio, extermínio. A crítica poderia se dar a partir do termo islamofobia, mas a gente observa que ela ocorre por outros termos".
De acordo com Sabrina Fernandes, a islamofobia pode ser notada em discursos que confundem o Islã com grupos fundamentalistas, dentre eles o Hamas. Ela vê um apagamento do que é a relação entre o povo e a religião na Palestina e uma estereotipização que desconsidera que há também cristãos e ateus entre os palestinos, ainda que sejam minoritários.
"O Islã e o Judaísmo podem ser instrumentalizados para projetos políticos extremos e discriminadores. O conflito entre Israel e os palestinos não é entre as religiões. Se trata de um conflito colonial e é por isso que antissionistas precisam ter um compromisso real em combater tanto a islamofobia, quanto o antissemitismo", afirma.
Segundo Bruno Huberman, a islamofobia tem se manifestado principalmente na ideia de que todos os palestinos são terroristas e de que o Hamas é essencialmente terrorista. No mundo, ele observa que os povos islâmicos têm sido vítimas de políticas discriminatórias e anti-imigratórias. São vistos como violentos e bárbaros. Além disso, são estereotipados, apagando as diferenças culturais entre eles.
"As pessoas não sabem, por exemplo, que iranianos, afegãos e paquistaneses não são árabes. De uma forma geral, o racismo opera reduzindo todos esses povos a uma mesma coisa. Na Europa, a islamofobia é considerada por alguns estudiosos como a forma de perpetuação do antissemitismo europeu. À medida que a população judaica se reduziu no continente por causa do holocausto, esse racismo foi se dirigindo aos muçulmanos, de uma forma muito parecida. Eles são culpados por tudo o que é ruim que acontece nas cidades europeias. São discursos que se assemelham".
Natalia Calfat pondera ser possível condenar as ações de grupos extremistas, seus princípios e suas táticas sem ser islamofóbico. "O Hamas é criticado por muitos membros inclusive da comunidade muçulmana. Ainda assim, há quem o critique carregando elementos islamofóbicos, o que em nada contribui para o debate e acirra a intransigência religiosa", avalia.